1. Introdução
A Reforma Administrativa é mais do que uma pauta política conjuntural. Ela representa um processo jurídico e institucional de reconfiguração do Estado brasileiro, com reflexos diretos sobre direitos fundamentais, competências constitucionais e a estrutura de prestação de serviços públicos.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro assumiu o compromisso de ser Democrático, Social e Republicano, fundamentado nos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, CF).
A reforma que ora se discute — e que retorna à pauta do Congresso sob diversas formas — busca repensar a máquina pública, redefinindo modelos de contratação, estabilidade, carreiras, gestão e responsabilidade fiscal.
Contudo, a reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão, mas uma questão jurídica e constitucional: altera o próprio pacto federativo, o regime jurídico-administrativo e a relação entre Estado e cidadão.
________________________________________
2. O Estado em Transformação
O Estado contemporâneo está em constante processo de transformação institucional, impulsionado por três grandes forças:
1. A exigência da cidadania ativa, que demanda um Estado mais transparente e participativo;
2. A necessidade de eficiência e sustentabilidade fiscal, que requer novas formas de gestão e de controle;
3. A revolução tecnológica, que desafia estruturas burocráticas tradicionais e impõe o paradigma da governança digital.
A Reforma Administrativa se insere nesse contexto como um instrumento de modernização da administração pública, mas também de revisão do contrato social entre o Estado e seus agentes, o que exige um olhar atento à segurança jurídica, à ética pública e à preservação de direitos adquiridos.
________________________________________
3. A Reforma Administrativa como Questão Jurídica
Embora muitas vezes apresentada como uma “reforma gerencial”, a reforma administrativa é essencialmente uma questão jurídica, pois incide sobre o núcleo constitucional do Estado e sobre o regime jurídico dos servidores públicos.
3.1. Fundamento Constitucional
A Constituição de 1988 consagrou o modelo de Administração Pública em seu Título III, Capítulo VII (arts. 37 a 41), estabelecendo princípios, direitos e deveres dos agentes públicos.
Qualquer reforma que altere esse sistema precisa observar o processo legislativo das emendas constitucionais (art. 60, CF) e respeitar as cláusulas pétreas, como o regime federativo e os direitos e garantias individuais.
A modernização administrativa, portanto, deve ser compatível com o art. 37, caput e incisos, especialmente os princípios da:
• Legalidade – o administrador só age nos limites da lei;
• Impessoalidade – o interesse público se sobrepõe ao pessoal;
• Moralidade – a ética é elemento indissociável do ato administrativo;
• Publicidade – a transparência é pressuposto da legitimidade;
• Eficiência – o foco é no resultado e na efetividade do serviço.
________________________________________
4. Cidadania e o Novo Papel do Estado
A Reforma Administrativa deve ser analisada sob a ótica da cidadania e da função social do Estado.
O art. 1º da Constituição define que “todo poder emana do povo”, e o art. 3º elenca como objetivos fundamentais da República erradicar a pobreza, reduzir desigualdades e promover o bem de todos.
Portanto, qualquer reforma que reduza a capacidade do Estado de garantir direitos fundamentais (educação, saúde, segurança, assistência social) precisa ser juridicamente questionada.
4.1. O Princípio da Supremacia do Interesse Público
A reforma administrativa deve preservar a supremacia do interesse público sobre o privado, princípio implícito que orienta a Administração desde Hely Lopes Meirelles.
No entanto, a supremacia não pode ser autorização para o retrocesso social. O STF tem reconhecido o Princípio da Proibição do Retrocesso Social (RE 565.714/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski), segundo o qual direitos fundamentais já incorporados não podem ser reduzidos sob o pretexto de ajuste fiscal.
________________________________________
5. Modernização e Governança Pública
O termo “modernização do Estado” não se confunde com privatização ou redução de direitos. Modernizar é tornar o Estado mais eficiente, transparente, participativo e orientado a resultados.
A modernização se dá por três eixos principais:
1. Gestão por Competências: valorização do servidor público, meritocracia e avaliação de desempenho (arts. 39 e 41 da CF).
2. Digitalização e Governo Aberto: aplicação da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e das políticas de governança digital (Decreto Federal nº 10.332/2020).
3. Controle e Responsabilidade: fortalecimento dos mecanismos de controle interno e externo (art. 74 da CF e Lei nº 14.133/2021, art. 169).
O advogado público — municipal, estadual ou federal — tem papel central nesse processo, pois é ele quem garante a juridicidade dos atos administrativos e a observância dos limites constitucionais da reforma.
________________________________________

6. O Papel dos Advogados na Reforma do Estado
A advocacia é protagonista na defesa da Constituição e da cidadania administrativa. O advogado é fiscal da legalidade e guardião do devido processo legislativo nas reformas estruturais.
O art. 133 da Constituição Federal é inequívoco:
“O advogado é indispensável à administração da justiça.”
No contexto da reforma administrativa, o advogado:
• Assegura que as mudanças estruturais respeitem os direitos adquiridos dos servidores e a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF);
• Atua no controle preventivo de constitucionalidade das leis locais, evitando que municípios aprovem normas inconstitucionais sob o pretexto de “modernização”;
• Orienta as Câmaras Municipais sobre a competência legislativa (art. 30, I, CF) e sobre vícios de iniciativa (art. 61, §1º, II, CF);
• Defende o princípio da impessoalidade e da meritocracia, combatendo a criação de cargos comissionados em desacordo com a Constituição (Súmula Vinculante 13/STF).
Assim, a reforma administrativa precisa do olhar jurídico e técnico do advogado público e consultor legislativo, sob pena de se tornar mero instrumento político.
________________________________________
7. A Reforma e os Limites Constitucionais do Estado
Toda reforma deve respeitar as cláusulas estruturantes da Constituição de 1988, especialmente:
• Art. 37, caput – Princípios da Administração Pública;
• Art. 41 – Estabilidade e regime jurídico dos servidores públicos;
• Art. 169 – Limite de despesa com pessoal e responsabilidade fiscal;
• Art. 60, §4º, IV – Cláusula pétrea da separação dos poderes.
A Reforma Administrativa não pode:
• Eliminar garantias constitucionais sob o pretexto de eficiência;
• Desfigurar o regime jurídico único (art. 39, CF);
• Ampliar a discricionariedade política em detrimento da impessoalidade;
• Reduzir o controle social e o acesso à justiça.
________________________________________
8. O Controle Externo e a Fiscalização das Reformas
O Tribunal de Contas, o Ministério Público de Contas e as Câmaras Municipais exercem papel essencial no acompanhamento das reformas administrativas. O TCE-SP tem reiterado, em pareceres e julgamentos recentes, que qualquer reestruturação administrativa deve observar:
1. Princípio da legalidade e moralidade administrativa (art. 37, caput, CF);
2. Compatibilidade com o orçamento e a LRF (arts. 16 e 17 da LC 101/2000);
3. Proibição de equiparação remuneratória (art. 37, XIII, CF);
4. Prova da necessidade de criação ou transformação de cargos;
5. Estudo técnico de impacto orçamentário e fiscal (TCESP, Comunicado SDG nº 16/2020).
________________________________________
9. Considerações Finais
A Reforma Administrativa deve ser compreendida não como uma ruptura, mas como um processo contínuo de aperfeiçoamento institucional, que concilie modernização e proteção dos direitos fundamentais.
O Estado moderno deve ser:
• Eficiente, mas sem perder a dimensão humana e social;
• Transparente, mas resguardando a segurança jurídica;
• Inovador, mas fiel ao texto e ao espírito da Constituição Cidadã.
O advogado, como operador do Direito e defensor da legalidade constitucional, é indispensável nesse processo. Cabe a ele garantir que a reforma administrativa se traduza em avanço democrático, e não em retrocesso institucional.
________________________________________
10. Referências e Fundamentação Legal
• Constituição Federal de 1988, arts. 1º, 3º, 5º, 37, 39, 41, 60 e 169;
• Lei Complementar nº 101/2000 (LRF), arts. 16, 17 e 42;
• Lei nº 8.112/1990, arts. 116 a 132 (regime disciplinar e deveres);
• Lei nº 14.133/2021 – Princípios da governança pública e eficiência;
• Decreto Federal nº 10.332/2020 – Estratégia de Governo Digital;
________________________________________

CAROLINE GUALTIERI e JOÃO COSTA